História

Identidade Cultural

 

Sendo provocadora de novos acontecimentos, instigadora de sonhos e repleta de imprevisibilidades, torna-se impossível dedicar à história de uma cidade uma análise puramente linear, pois nela vivem pessoas e cada uma com suas conexões sociais que geram experiências, buscas e vivências, num processo dinâmico que não se limita a um único ponto de vista, tampouco se encerra em um tempo histórico específico. Por isso a memória é viva e os fatos são inquietos, pois, transitando desde o passado, repercutem no presente e apontam suas consequências no futuro. Adiante, sendo analisada, a trajetória será reveladora de histórias, legados e experiências que retratam a identidade da comunidade que a construiu e a constrói.

Alguns desses caminhos percorridos, como os dos tropeiros, que no lombo de mulas passaram por subidas e decidas para cumprir o propósito de transportar suas mercadorias de um lugar a outro do país.

Quanta memória nessa estrada! Chuva, sol, poeira, distância, sonho, sobrevivência, paradas, encontros e desencontros. Assim é o percurso de uma caminhada, e dele muitos frutos são colhidos, como o surgimento da cidade de Araranguá.

Então, a cidade emerge da diversidade cultural, onde o contato dos que aqui habitavam com os viajantes e comerciantes, mais tarde com os açorianos e posteriormente com outras etnias, como italianos e alemães, constitui a nossa base cultural. Quantas histórias para contar! Cada um em seu tempo, carregando a sua bagagem e nela o seu modo de agir e pensar, os seus costumes, crenças e tradições.

Na descrição dessa análise esse texto propõe uma reflexão sobre a identidade cultural de Araranguá, e sugere que sua essência é diversa e que para entendê-la temos que conhecer e preservar nossa história, interagir com o meio, respeitar as diferenças, ter o entendimento de que a caminhada de cada cidadão reflete no trajeto infinito percorrido pela cidade.

 

Texto: Micheline Vargas de Matos Rocha

 

Alguns aspectos históricos de Araranguá

 

Séculos XVI, XVII e XVIII: Araranguá nos mapas – indígenas no interior

 

  • Araranguá, com grafias diferentes, como “Araringá”, “Ararunga”, “Iriringá”, entre outras, já aparecia em diversos mapas que sinalizavam os pontos principais no processo de reconhecimento da costa brasileira. O destaque, na verdade era o rio, referência que chamava a atenção dos viajantes e cartógrafos que passavam pelo caminho litorâneo. Pelo vasto interior habitava o indígena Guarani, depois os remanescentes dos Xokleng, povos que foram perseguidos, escravizados, mortos ou expulsos. Quando os primeiros povoadores de Araranguá tiveram contato com os indígenas, na maioria das vezes de forma hostil, eles já estavam em processo de desaparecimento, em busca de outras regiões mais seguras.

     

Século XVIII e XIX: Mão de obra escrava

 

  • No Brasil a escravidão indígena deu lugar ao sistema de escravização de africanos, que originários de diversos povos daquele continente, eram comercializados e enviados para as diversas capitanias, depois províncias brasileiras. A mão de obra escrava em Araranguá é parte dos cerca dos 340 anos em que o sistema funcionou oficialmente no Brasil. Atualmente, grande parte dos traços que compõem a nossa identidade cultural têm origem na etnia afro-brasileira.

     

1728 – 1738: Abertura do Caminho dos Conventos

 

  • Ligação entre o litoral e o planalto, utilizado principalmente por tropeiros para transportar animais e mercadorias de um lado a outro no centro-sul do País. Essa movimentação traz consigo a necessidade da formação de pontos de paragem, hospedagem, comércio, suprimento de serviços para a montaria, entre outros. Neste contexto ganha espaço Araranguá, pertencente à Laguna, cuja formação gradativa torna-se um pequeno e importante povoado.

     

Bugreiro e suas vítimas – Autor desconhecido – Livro – Xokleng – Silvio Coelho dos Santos

Mapa Rota do tropeirismo no Sul do Brasil – Acervo – Limeira online

 

1748 – 1756: A chegada dos Açorianos

 

  • Milhares de açorianos aportam em Santa Catarina, tendo como destino, principalmente Desterro, mas também diversas vilas do litoral da Província. Uma parcela do contingente e descendentes, já no estágio secundário, se desloca e se fixa em outros pontos do litoral, inclusive em Araranguá, formando, junto a lagunenses, tropeiros, negros e os demais povoadores, a base social, familiar e cultural de Araranguá.

     

1816: Crianção da primeira capela e a importância histórica e cultural de Canjicas

 

  • Com a chegada, fixação de moradores e a formação do povoado, surgem as demandas sociais e religiosas. Assim, em 1815, Canjicas, como era chamado o atual distrito de Hercílio Luz, obtém junto ao bispo do Rio de Janeiro, o português D. José Caetano da Silva Coutinho, a autorização para a construção de uma capelinha, que seria o primeiro templo religioso da região. Com o passar do tempo, o pequeno núcleo se estruturava socialmente, tendo na pesca e na agricultura as suas principais fontes de subsistência, além do comércio com tropeiros e outros viajantes, que envolvia também produtos agrícolas e derivados, como a principal fonte de sua pequena economia. Este período foi um dos divisores da história de Araranguá. Canjicas era um povoado de grande importância não só porque detinha quase toda a movimentação econômica, religiosa e social que precedeu o município, mas também por ser um lugar estratégico, próximo à foz do rio, por onde chegavam embarcações e transitam viajantes pela estrada litorânea, além de tropeiros nas idas e vindas serra acima, serra abaixo. Isto fortalecia a sua estrutura social, que aglutinava diversos elementos que comporiam alguns traços conhecidos da identidade araranguaense. Destacam-se como aspectos da cultura de Canjicas, marcas do modo de vida de seus moradores, a cultura material – com a produção de artesanato utilitário e decorativo, e a cultura imaterial  com causos, lendas e mitos que compõem o imaginário popular.

     

    Águeda da Cruz Cardoso, artesã e pescadora – Foto: Sandro Ramos

    Máxima Astrogislda de Souza, artesã – Foto: Micheline Vargas de Matos Rocha 

     

    Roberto Carlos Sebastião e Rinaldo Ramos da Rosa, pescadores – Foto: Sandro Ramos

    Manoel Hermógenes Inácio, agricultor – Foto: Sandro Ramos

     

1824 – 1920: Imigração de europeus continentais

 

  • A ocupação do imenso espaço araranguaense teve como forte componente a imigração, antes de açorianos, depois de europeus continentais, principalmente de italianos e alemães, e em menor número de poloneses. Os alemães têm seu processo imigratório iniciado na década de 1820, e Santa Catarina e Rio Grande do Sul recebem significativa parcela do contingente. Décadas mais tarde a região de Araranguá receberia grupos teutos e descendentes vindos de outras partes do Estado e também do Rio Grande do Sul. Já os italianos, com fixação inicial em Azambuja, deslocam-se para a região por volta de 1880, inicialmente formando um núcleo em Criciúma, e aos poucos com deslocamentos e fixações em outras áreas de Araranguá. Em menor número, outra etnia que registra a sua presença e Santa Catarina é a polonesa, com legado registrado também em Araranguá e região. Cada etnia teve um papel importante na construção da base cultural e social local. No entanto, considerando-se os povoadores e imigrantes, após as emancipações territoriais que formaram os municípios da AMESC e parte da AMREC, a base cultural predominante araranguaense é a açoriana.

     

1848: Criação do distrito e da freguesia

 

  • Quase 100 anos após a abertura do Caminho dos Conventos, são criados o distrito de Campinas e a freguesia (paróquia) de Nossa Senhora Mãe dos Homens a, ainda vinculados à Laguna. Outro distrito é também criado, o de Passo do Sertão, atual São João do Sul, ambos integrantes da imensa área da nova freguesia, que abrangia, então, toda a área da atual AMESC e parte da AMREC, totalizando atualmente 20 municípios. Embora criados, a freguesia e o distrito não são instalados em Cangicas, mas onde temos hoje, no caso de Campinas, o atual Centro de Araranguá. A escolha da sede em outro local causou abalos em Cangicas, já que a movimentação social, política e econômica passaria a voltar-se para a nova sede.

  • No novo espaço geográfico e social inicia-se um processo de estruturação política, administrativa e religiosa, com efeitos gradativos na economia de base agrícola, principalmente de subsistência, mas também com atividade comercial.

     

1880: Criação do município de Araranguá

 

  • O distrito e a paróquia eram singelos, mas já possuíam uma pequena urbanidade e discreta movimentação de pessoas, destacando-se na paisagem o trânsito de carroças e cavaleiros, algumas casas de moradias e outras de comércio. Enquanto isto, no vasto interior, o que se via, além do deserto de imensas florestas, eram significativas áreas ocupadas por atividades de plantio e pecuária. Algumas ilustrações e imagens do início do século XX, ajudam a ilustrar o cenário daquela época.

Tropa da Força Pública SC defronte Paróquia NSM Homens – Final séc. 19 – Foto: Acervo AHA

Capela da Cangicas – Final séc.19 – início séc. 20 – Foto: Acervo AHA

 

1886: Planificação do município de Araranguá

 

  • Um dos primeiros passos na estruturação de uma cidade é a sua organização territorial, onde serão definidos os espaços urbanos e rurais, traçados de ruas, criação de praças, áreas comerciais, industriais e de moradia. No entanto, na maioria dos casos, os planejamentos, ou inexistem, ou são elaborados tardiamente para corrigir os problemas que a cidade enfrenta.

Segundo Hobold (1994), Araranguá encontrou bem melhor sorte, ao receber das mãos do engenheiro Antônio Lopes de Mesquita, em 1º de setembro de 1886, uma planta com o título sugestivo de “Planta da Futura Cidade de Araranguá”, dotada de arruamento baseado em moderna urbanística, com amplos logradouros públicos, avenidas e ruas largas, simétricas e retilíneas. O projeto de Mesquita causou estranheza entre os moradores da época. Como imaginar que ruas para o tráfego de carroças e carros de bois tivessem um traçado tão largo, bem diferente das estreitas ruelas de Desterro e Laguna? No entanto, com o tempo, o que parecia ousado demais, foi ganhando destaque como exemplo de planejamento, o que mais tarde rendeu à cidade o sugestivo título de “Cidade das Avenidas.”

           

              Cópia original da planta de Araranguá,     Engenheiro Antônio Lopes de Mesquita                        desenhada por Oscar Boronski em 1892.

 

O século XX e a consolidação do município

 

  • As primeiras décadas do século XX foram marcadas por importantes transformações que Araranguá assistiu em diversos aspectos, como no transporte, na saúde, com a criação do hospital Bom Pastor; na educação, com a implantação de escolas; na economia, com o desenvolvimento da agricultura e a criação de algumas indústrias, além da ampliação do comércio.

  • As mudanças seguiram-se ao longo de todo o século, que registrou grandes transformações também no aspecto geográfico, com a emancipação de municípios, diminuindo drasticamente o território municipal. Esta dinâmica, própria de um município em crescimento e em consolidação, foi decisiva e repercutiu diretamente no desenvolvimento social, econômico e cultural do município. Este processo resulta de caminhos com muitas curvas, numa intensa e contínua movimentação no curso do processo histórico, em que nada é cronologicamente exato, ao contrário, das inexatidões suscitam outras análises e investigações, novas, reveladoras e instigantes pesquisas.

    

                     Araranguá,década de 1910                      Chegada do primeiro automóvel em                       Foto: Bernardino de Senna Campos             Araranguá, 1916 – Registro em frente ao                                                                                              Hotel dos Viajantes – Acervo – AHA

   

      Avenida Sete de Setembro, década de 1920    Área central de Araranguá, início séc. 20                    Foto: Bernardino de Senna Campos              Foto: Bernardino de Senna Campos  

 

                           Café Brasil, esquina democrática em tempos de eleição, 1950                                                                                 Foto: José Genaro Salvador

Outros aspectos da história de Araranguá:

 

Meios de transporte

 

  • Quanto à evolução dos meios de transporte, setor fundamental para a vida de qualquer cidade, observamos que no passado os deslocamentos dentro e fora do município eram feitos por tração animal, tanto para uso pessoal, quanto para o transporte de cargas e para o comércio. Com as estradas precárias, ou mesmo a ausência delas, o transporte representava um dos maiores problemas e grandes desafios para governantes e usuários. Aos poucos, isto foi sendo resolvido, além de o setor ganhar alternativas como a implantação da ferrovia, e antes desta grande novidade, o tráfego fluvial e marítimo, com entradas pela barra e atracamentos no rio Araranguá. Dada a sua importância, o suporte por embarcações não foram imediatamente extintos com a chegada de novos meios, como o ferroviário, o rodoviário e o aéreo.

  • Mas foi com a chegada do trem na década de 1920 que Araranguá ganhou um sinal visível de progresso. A ferrovia, afinal, integrou a cidade na rota do desenvolvimento do sul catarinense, transportando pessoas e cargas de todos os tipos. Contudo, este fator não eliminou o rudimentar carro de boi, que seguiu funcionando de forma articulada com outros meios, como caminhões e embarcações. Essa análise possibilita identificar o papel da evolução tecnológica em cada tempo histórico e a maneira com que os recursos e os diversos meios foram utilizados no processo de construção da cidade.

 

       Parada defronte ao Hotel dos Viajante                Trem chegando na estação da Barranca                  Década de 1950 – Acervo – AHA                Década de 1950 – Foto: José Genaro Salvador

Avião VARIG no antigo aeroporto, década de 1950 – Foto: José Genaro Salvador

 

Os encontros de gerações

 

  • Viajar pelo centro urbano de Araranguá com auxílio de imagens fotográficas, é acompanhar com imaginação o cotidiano de homens e mulheres, sua forma de vestir, se divertir e se relacionar; é tentar compreender o comportamento das gerações passadas em seu tempo, com quase tudo por fazer. É olhar as moças na praça, transitando cheias de expectativas e sonhos, é ficar curioso para saber quem seria aquele senhor que passa em sua carroça ou que está tranquilamente olhando o movimento diante de uma loja na área central. É perguntar-se: como viveram, o que faziam, quem são os seus descendentes? Em fim, é tentar entender um tempo distante e seus sujeitos, que já em muitos casos, não estão mais entre nós, mas que deixaram suas impressões vivas em algum aspecto da memória local.

  • Refletir à luz da materialidade é simples, mas compreender as gerações e seus anseios parece ser mais complexo. O conflito humano diante de sua existência não caracteriza apenas um fator da sociedade atual. Cada época traz consigo novos debates sociais e individuais e muitos ultrapassam gerações. Assim, todos os tempos ajudam a alicerçar a base social que forma uma comunidade.

 Cotidiano – Início séc. 20 – Foto – Bernadino de Senna Campos

Cotidiano – Início séc. 20 – Foto – Bernadino de Senna Campos 

 

  • Diante deste breve relato histórico, pôde-se perceber o quanto a cidade se modificou, não apenas em sua estrutura e aspectos paisagísticos culturais e naturais, como também no modo de agir, pensar e fazer dos seus habitantes.

  • Quanto ao seu patrimônio edificado, as imagens causam certo espanto pelas mudanças e pelos visíveis indicativos das representatividades do “progresso”. Por outro lado também causam resignação, porque a cidade não soube preservar suas riquezas arquitetônicas.

  • Neste cenário de desaparecimentos, foram-se com o vento do tempo, as marcas do passado, que expressavam a presença de tantas gerações que partiram. Registre-se o lamento pela falta de preservação do patrimônio material histórico da Cidade das Avenidas, assim como muito do seu patrimônio natural, da mesma forma.

 

           Festa do Divino Espírito Santos, 2017                 Festa do Divino Espírito Santos,                                    Foto: Rafael Torman                      década de 1940 – Foto: José Genaro Salvardor

 

Referências bibliográficas:

 

Dall´Alba, João Leonir: Histórias do Grande Araranguá, 1997.

Hobold, Paulo: A história de Araranguá, 1994/2005

Campos, Bernardino; Dall´Alba, João Leonir (org). Memórias do Araranguá, 1987.

JM Memória, 1998.

Acervo do Arquivo Histórico de Araranguá

Textos: Micheline Vargas de Matos Rocha